sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

"O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba."

Texto extraído do livro "O amor acaba", Editora Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1999, pág. 21, organização e apresentação de Flávio Pinheiro.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

De repente

Olho-te espantado:
Tu és Estrela do Mar.
Um minério estranho.
Não sei...

No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão.
Era sempre o teu seio!

Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...
Mas agora encheram-se de sombra
                                    [os cântaros

E só o meu cavalo pasta na solidão.



(Mário Quintana)

sábado, 19 de maio de 2012

Liberdade Condicional

Poderás ir até a esquina
Comprar cigarros e voltar
Ou mudar-te para China
-só não podes sair de onde tu estás.
Mário Quintana

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A impressão que me dá é que nós fazemos os mesmos erros repetidas vezes e que muitas delas nós estamos pensando fazer o melhor. Se parassemos para pensar que tudo seria igual de novo, eu não faria tudo o que eu fiz. Esforço inútil. Eu tenho vontade de nascer de novo, renascer a partir de agora e nunca mais ser como eu fui. Não me liguem, eu estou longe, tão longe que se quer eu me acho. Meu amor não acabou, minha confusão tomou conta de mim, eu estou fraca e preciso de soluções rápidas, mortes rápidas, eu que achava que as coisas ainda podiam dar certo. Não pra mim. Não agora. Talvez, algum dia. Tudo passa.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Leite, leitura


letras, literatura, tudo o que passa,


tudo o que dura


tudo o que duramente passa


tudo o que passageiramente dura


tudo,tudo,tudo


não passa de caricatura


de você, minha amargura


de ver que viver não tem cura


LEMINSKI, Paulo. O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 1996.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"Quando o sol brilha, desfrute-o; quando a chuva cai, desfrute-a.Todas as coisas nesta vida – deixe que venham e deixe que se vão. Este é um segredo da vida que nos impede de ficar aborrecidos ou neuróticos. Todas as coisas na vida e no mundo estão em constante mutação; por isso, não se torne apegado a elas."

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

algo: preto

O sentido do passado nasce

de objetos-já.



Em todos os momentos evidentes

procurei-te



Também em tênues



interregnos



Procurei quem?



onde



estás?



quem?



quem, não tem mais sentido



nem quê (sem nome, em nenhuma língua)



Eu retornaria, alguns passos atrás, eu estaria



num espaço



diferente,



em certo sentido precário.



Como se o som atravessando a água



baixasse de uma quarta.”
ROUBAUD, Jacques. algo : preto. Tradução de Inês Oseki-Dépré. São Paulo: Perspectiva, 2005. p.38.